Gostava do lugar onde o tinham colocado na livraria. Detestaria estar na montra, como aquele outro livro que lá estava. Exposto. À vista de toda a gente, com aquele calor que vinha da lâmpada que era usada para lhe dar maior destaque. Também não estava na mesa das últimas novidades. Esses, eram os mais cobiçados. O primeiro ponto de paragem para os compradores. Era impressão dele, ou eles não sabiam muito bem o que queriam? Pegavam nos livros, viravam-nos, folheavam-nos sem os ler, de certeza, porque ninguém lê assim tão depressa. Alguns até encolhiam os ombros quando finalmente se decidiam por um. Uma vez, uma pessoa levou-os todos, todos, apertados dentro de um saco. Ele queria que, quando o fossem buscar, o procurassem só a ele. Não queria ser um acaso, queria ser uma escolha.
Ele não era o único livro da livraria. Nem sequer era o único livro com aquele título. Mas os livros eram todos diferentes, mesmo os iguais. As pessoas não sabiam isso. Nunca tinham estado numa fábrica de livros. Não havia um exactamente igual ao outro. Ele estava numa mesa no segundo patamar. De lá, conseguia ver tudo. Via quem entrava e quem saía. Para se entreter, às vezes, punha-se a imaginar como seriam as pessoas, o que fariam com os livros que levavam para casa. Começou a saber distinguir o brilho nos olhos de quem comprava. Às vezes não havia nenhum, outras, uma pequena centelha, outras um brilho a sério. Ansiava que quem o levasse tivesse este último. O problema era que este brilho maior aparecia geralmente nos olhos das crianças, e ele não era um livro para crianças. Ainda bem! Elas estragavam os livros, arrancavam folhas, pintavam, algumas (ouvira dizer) até comiam as folhas.
Um dia, viu-a. Parecia ansiosa. Se calhar era daquelas que pega nos livros todos. Ou daquelas em que as mãos tremem muito. Às vezes deixavam cair os livros. Quando ela parou à sua frente, por momentos chegou a ter medo e até se encolheu um bocadinho, fechando a capa. Surpreendeu-se com a maciez do toque, a firmeza das mãos. Gostou, principalmente, do brilho nos olhos. Sentiu-se seguro. Partiram juntos.
Que viagem fizeram juntos! Ele estava sempre presente. Parecia que fazia parte da mão dela. Nas suas páginas, podia adivinhar-se tanta coisa! Tinha marcas de sorrisos, migalhas das bolachas preferidas (eram de chocolate), letras apagadas pelas lágrimas, marcas de beijos, e umas folhas amassadas por abraços. Ele deu-lhe as letras que trazia consigo. Ela acrescentou letras às suas páginas, por vezes eram apenas umas cócegas, que o faziam rir, escritas por plumas (seriam?), outras arranhavam, escritas com força. Por uns tempos o mundo fora uma aventura.
Nos últimos tempos, tinha ficado mais vezes pousado, sem abrirem as suas páginas. Que sensação estranha! Um dia, pensou que ia voar. Sentiu-se subir, subir... (não gostava nada daquilo!). Fechou os olhos. Tinha vertigens. Quando os abriu, não reconheceu o sítio onde estava.Estava num lugar alto, rodeado por outros parecidos com ele. Estava numa prateleira. Pensou que fosse só para passar aquele dia, para a casa estar arrumada, sem nada fora do sítio. Mas o dia tornou-se uma semana, a semana um mês, o mês quanto tempo? Já perdera a conta. Não lhe apetecia contar. De vez em quando ainda o tiravam da prateleira, para ler uma frase esquecida. Nessas alturas, aproveitava para tentar unir as suas palavras com as dela, mas não conseguia. De vez em quando tornou-se de muito quando em vez. Habituou-se ao novo lugar, mas não gostava. Continuava a ter vertigens. Não gostava de estar sempre fechado. Não gostava de guardar as suas letras para si. Não gostava que não lhe escrevesse as notas no rodapé ou nas margens. Doíam-lhe as dobras, de tanta imobilidade. Diziam-lhe que era o livro preferido, mas ele apenas se sentia sozinho.
Pensou então nos livros das crianças. Essas não tinham prateleiras, e tinham cores bonitas. Chegou-se um pouco mais para a frente. Se alguma conseguisse chegar até ele... só tinha medo que fosse uma das que comem as páginas, mas decerto esse risco não correria. As suas páginas, tal como ele, tinham adquirido a dureza da madeira da prateleira.
7 comentários:
Nirvana, gostei muito do texto...
retrata muito a reacçao do ser humano perante determinados objectos...
Tal como o livro, muitos outros dariam para a tua historia.
as coisas so se tornam "magicas", quando ainda se tem algo para contar, algum objectivo nao alcançado, porque quando chega ao fim da sua viagem, aventura, começa a perder o interesse, esse é agora apenas mais um no meio de muitos outros...
ao ler ja a parte do fim, do lado esquerdo, dei de caras com o selo, à qual é uma pagina e se vê a abraçar a senhora... no fundo, na tua historia, era assim que o livro se queria sentir Sempre :)
beijinho Nirvana.
gostei mesmo!!
Ora cá está! Não me canso de afirmar que há livros que sorriem para nós e nos piscam o olho quando passamos junto deles nas livrarias, mas lamentavelmente quase ninguém acredita no que eu digo... quase... ;)*
Adorei o texto!
Há livros que chamam por nós, que não conseguimos largá-los, mesmo arrumados numa prateleira conforta-nos saber que lá estão :)
Deu-me vontade de tirar todos os meus livros da prateleira e lê-los um pouquinho... Um pouquinho de todos, para não se sentirem sózinhos nem abandonados!...
Há mesmo livros que sorriem para nós!...
Beijinhos ;P
Bonito post. Bem elaborado, com princípio, meio e fim, triste e terno.
À medida que o ia lendo, ia pensando em como isto acontece tantas vezes. Fico com a impressão que não era de livros que falavas, mas sim de pessoas, uma analogia muito bem conseguida.
Continua a escrever posts assim!
Um beijo
Alexandre
Lindo! Este não foi a cup, foi o bule todo ;).
De todas as frases, escolho uma, "Não queria ser um acaso, queria ser uma escolha." Só esta frase daria um post.
Um abraço
Já "falámos" sobre isto... Mas é aqui que me parece ser o local indicado para deixar estas palavras, minha AMIGA;
Tenho comigo que um "livro" se realiza ao "dar-se"! Ao partilhar todo o seu conteúdo com quem dele precisar. Ainda que o coloquem nessa tal "prateleira", conforta-o SABER que não é "ali" que pertence. Mas, humilde, deixa-se por lá ficar. Afinal, quem o lá colocou, não saberia procurá-lo noutro lugar!
"É cuidar que se ganha em se perder"
Beijinho, Nirvana.
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